31.1.11

Apelidos

Meninos de coro


      Na sua edição de 27 de Maio de 1942, o Jornal do Brasil publicava um texto intitulado «Nomes próprios... impróprios». Revelava esse texto que na última fornada de portugueses que tinham alcançado a naturalização no Brasil se contava um cidadão com o nome de José Francisco Catarro. A determinada altura, lê-se: «Devia ser proïbido no Brasil o uso de nomes risíveis, grotescos, repugnantes e obscenos.» Passados setenta anos, a proibição seria agora mais necessária. Agostinho de Campos, sem se abespinhar, referiu o caso para falar de alcunhas e apelidos. «¿Como evitar, por exemplo, que os rapazes chamem parvalhão a um professor de apelido Carvalhão? Em todo o caso previna-se o mal até onde fôr possível», considerava a propósito de uma lei que existia então na Alemanha que permitia que os indivíduos com nomes risíveis — como Fleischfresser, ou Rindfleisch, ou Tischbein — que seguissem a via do professorado mudassem de nome. Quanto a apelidos portugueses, escrevia: «Além de Freire e de Frade existem outros apelidos provenientes de títulos eclesiásticos: Monge e os seus parentes Moogo e Moog; Bispo e até Pontífice. Clerguinho e Mousinho são como quem diz “meninos do côro”» («Das alcunhas aos apelidos», in Língua e Má Língua. Lisboa: Livraria Bertrand, 1944, pp. 289-90).
      Como sei que alguns dos meus leitores têm curiosidade sobre a origem dos seus apelidos, deixo estas notas de Agostinho de Campos (1870—1944), escritor, pedagogo, jornalista e político português.

[Post 4380]

Tradução: «core capital»

A quem aproveite


      De vez em quando, é bom ver o que se diz em Espanha. Recentemente, a Fundéu recomendou que a expressão inglesa core capital se traduza por «capital principal» ou «capital básico». E justificava: «Aunque haya definiciones técnicamente precisas establecidas por el Comité de Basilea, esta expresión se emplea para aludir a los recursos que los bancos tienen siempre disponibles para poder hacer frente a los imprevistos, y se considera que entra en la parte principal de su patrimonio, por lo que las traducciones más adecuadas son capital principal o capital básico.» No Diário de Notícias, já li que o core capital é o rácio de fundos próprios de que os bancos podem dispor sem risco. Cá, estas recomendações cairiam sempre em saco roto.

[Post 4379]

30.1.11

Acordo Ortográfico

Pré-acordo a pedido


      À rubrica «Radar Flashback», da revista Visão, Vasco Graça Moura declarou: «Vi na televisão a palavra “fatura”. A RTP passa a aplicar o Acordo Ortográfico. Vai engrossar o número de responsáveis institucionais por um crime contra a língua portuguesa» (6.01.2011, p. 12). Claro que os responsáveis da revista Visão, não institucional, tiveram de acrescentar: «A pedido do próprio, manteve-se aqui a ortografia pré-acordo». Irónico, não é? E um pouco como cuspir na sopa, digo eu.

[Post 4378]

29.1.11

Léxico: «idadismo»

Discriminação


      Racismo, sexismo, idadismo... Sim, sim, mais um neologismo. Em inglês, ageism, surgiu em 1969, cunhado pelo psicólogo americano Robert Butler. Eis a definição do Merriam-Webster: «prejudice or discrimination against a particular age-group and especially the elderly». Como seria mais que previsível, já por aí corre também com o nome de «ageísmo».

[Post 4377]

Acordo Ortográfico

Bem-aventurados


      D’Silvas Filho, no texto «Novos argumentos a favor do Acordo Ortográfico», afirmou: «Diz-se que o acordo de 1990 apresenta os mesmos defeitos científicos que o projecto de 1986. Ora o argumento não é válido na comparação, pois um motivo (além do horror ao cágado sem acento, como lembro sempre) por que o projecto de 1986 foi abandonado era justamente ter soluções inaceitáveis nos poucos casos em que a procura da simplicidade foi imponderada (ex.: *bemaventurado, com possibilidade de retorno da grafia sobre a fonia). Isto não se verifica no acordo de 1990.» Lembrei-me agora desta afirmação quando li esta frase na Nova Floresta, do padre Bernardes: «Determinado tinha S. Agostinho consultar a seu amigo S. Jeronymo sobre o que sentia da gloria dos bemaventurados.» Cito uma edição do século XIX, mas, para o fim em vista, é indiferente. Alguém acredita que tenha havido retorno da grafia sobre a fonia ou perigo de tal ter acontecido? Bem sei: outros tempos, havia menos leitores e mais ouvintes. Ainda assim, é preferível termos o acordo de 1990.

[Post 4376]

«Si próprio/si mesmo»

Pois bem


      Há dias, um leitor habitual do blogue perguntou-me se «si próprio» e «si mesmo» eram ambas locuções correctas ou uma era mais correcta. Tanto quanto sei, ambas estão correctas, mas creio que pode haver confusão com o uso do pronome pessoal connosco, que normalmente não se emprega com pronomes demonstrativos (mesmo, próprio, etc.) nem com numerais. Em alternativa, empregar-se-á o pronome nós precedido da preposição com: com nós mesmos; com nós três. Porquê? Napoleão Mendes de Almeida, por exemplo, só refere razões de eufonia: «Nota — Manda, entretanto, a eufonia que se diga com nós mesmos (ou mesmas) e com nós próprios (ou próprias) em vez de conosco mesmos e conosco próprios. A mesma regra se deve observar quanto às formas com vós mesmos (ou mesmas) e com vós próprios (ou próprias)» (Gramática Metódica da Língua Portuguesa. São Paulo: Edições Saraiva, 1979, p. 175). Na Nova Floresta, de Manuel Bernardes, contudo, leio «connosco mesmos».

[Post 4375]

«Ficar sem pinga de sangue»

Imutáveis, fixas


      «Por momentos, a médica Joana Seabra, grávida de dois meses, e o farmacêutico José Malta ficaram sem pingo de sangue» («Anatomia de um crime», Miguel Carvalho, Rosa Ruela, Teresa Campos e Sara Rodrigues, Visão, 13.01.2011, p. 88).
      Ainda há — graças a Deus! — coisas imutáveis, e entre elas estão os idiomatismos. Não se diz «ficar sem pingo de sangue» — mas sim «ficar sem pinga de sangue».

[Post 4374]

Pontuação

Ora, ora


      «Por isso, quando o seu carro me apareceu à frente, ainda antes do Cais do Sodré, foi-me fácil alimentar o crescimento de uma irritação no espírito. Desacelerar atrás de si, fez-me prestar atenção súbita à realidade concreta daquele fim de tarde: o trânsito, as apitadelas, o céu escuro, a quase noite» («Carta à senhora que ultrapassei pela direita na semana passada, na zona de Santa Apolónia», José Luís Peixoto, Visão, 13.01.2011, p. 12).
      Não pode haver, julgo, duas interpretações sobre isto: «Desacelerar atrás de si», que, em si, é uma oração, é o sujeito de «fez-me» — e nunca se separa o sujeito do verbo e este dos seus objectos com uma vírgula, quando a oração se apresentar na ordem directa. Um escritor até pode distrair-se ou julgar ter uma licença especial para desrespeitar a gramática, mas os revisores não podem ter essas veleidades nem distrair-se muito.

[Post 4373]

O prefixo «re-» no AOLP

Ah, estou a perceber


      «Foi já no Governo que Maria João Seixas o re-encontrou, acedendo ao convite para ser sua assistente» («O mais civil dos militares de Abril», Paulo Chitas, Visão, 13.01.2011, p. 43).
      Como já aqui escrevi uma vez, salvo para afirmar, na Base II, n.º 2, b), que o h inicial é suprimido quando, por via de composição, passa a interior e o elemento em que figura se aglutina ao precedente (reabilitar, reaver), nunca o Acordo Ortográfico de 1990 refere o prefixo re-, mas nem mesmo a omissão deixou a salvo a regra que tradicionalmente se observa. Parece que confiaram tudo ao corrector ortográfico Flip 7, da Priberam, que interpretou erradamente a Base XVI do Acordo Ortográfico de 1990 («Do hífen nas formações por prefixação, recomposição e sufixação»). Concretamente, a origem do erro está na interpretação da alínea b), n.º 1, daquela base: «Nas formações em que o prefixo ou pseudoprefixo termina na mesma vogal com que se inicia o segundo elemento: anti-ibérico, contra-almirante, infra-axilar, supra-auricular; arqui-irmandade, auto-observação, eletro-ótica, micro-onda, semi-interno
      Os redactores do acordo foram imprudentes ao não referirem as excepções. «Um caso», comentou aqui o leitor Franco e Silva, «é aquele que muito bem comenta, o do prefixo re- quando se segue palavra iniciada com e, em que o bom senso e a antiquíssima e estabilizada tradição vocabular justifica a fusão dos elementos (como em reeditar e reeleger, etc.). Outro caso é o do prefixo sub- quando se segue um elemento vocabular iniciado por r ou b (sub-reptício, sub-roda, sub-base, sub-bibliotecário, etc.) em que o bom senso, a cimentada tradição vocabular e até a orientação de pronunciação justificam a sua manutenção. Causa estranheza que conceituados linguistas aceitem a segunda excepção, mas não a primeira, a contrario do VOLP (ALB), que na nossa opinião muito bem, pontificaram como distracções as lamentáveis omissões da comissão luso-brasileira do A.O. e hifenizaram tais palavras.»
      E agora uma experiência: pego na frase da Visão e analiso-a no conversor ortográfico da Porto Editora, gratuito. Resultado: «17 palavras analisadas, 0 modificadas — 0% alteradas». Muito bem, então agora modifico a frase: «Foi já no Governo que Maria João Seixas o reencontrou, acedendo ao convite para ser sua assistente.» Resultado: «17 palavras analisadas, 0 modificadas — 0% alteradas». Poderá haver análises mais científicas, com recurso a algoritmos e não sei que mais, mas eu estou satisfeito.

[Post 4372]

28.1.11

«Maltrato»?

Que dizem?


      Leio aqui: «São várias as teorias que procuram explicar o maltrato e o abuso.» Como sucede com outros vocábulos, a dúvida avoluma-se-nos na mente: castelhanismo ou derivado regressivo? Acción y efecto de maltratar. O Aulete Digital (verbete novo...) regista que é derivado de maltratar. Não é muito usado entre nós.

[Post 4371]

Tradução

Inglesamentos evolutivos


      Outra personagem aguardou os amigos defronte do «Hollywood Teatro» — Hollywood Theatre no original inglês. Vasco Botelho de Amaral iria persignar-se. Ouçamo-lo: «Mas fiquemos nisto: bar, como aportuguesamento do inglês bar, explica-se por evolução. Pergunto agora: “Victória Bar”, “Cristal Bar”, “Concha Bar”, e maravilhas assim explicam-se também por evolução? Respondam os “evolucionistas”, porque eu acho melhor não responder. Considero suficiente a comparação destas denominações com a construção que algum maníaco se lembrasse de aplicar, generalizando o inglesamento. Passaríamos a ter um Recreios Coliseu, uma Geral Abastecimentos Intendência, um Nacional S. Carlos Teatro, uma Municipal Lisboa Câmara, um Gil Vicente Liceu, e, por fim, evolutivamente, um Rilhafoles Hospital» (Glossário Crítico de Dificuldades do Idioma Português. Porto: Editorial Domingos Barreira, 1947, p. 15).

[Post 4370]

27.1.11

Uso do gerúndio

Maior vernaculidade


      Tratava-se de traduzir a seguinte frase em francês: «Le chrétien croit à un Dieu possédant toutes les perfections.» Respondeu Augusto Moreno na obra Lições de Linguagem, vol. 1 (Porto: Editora Educação Nacional, 1937, pp. 94-95): «É que o nosso gerúndio não traduz bem, em regra, o particípio presente francês. O nosso gerúndio nunca deve ser meramente qualificativo: tem sempre alguma coisa de circunstancial. O possédant devia traduzi-lo por uma oração relativa. Assim: “Crê o cristão num só Deus, que possue todas as perfeições.” Repare também em que o verbo antes do sujeito, ao contrário do estilo francês, é característico da melhor vernaculidade. Quando a clareza e harmonia se não oponham à inversão, é claro.»

[Post 4369]

Léxico: «bearnês»

Esqueceram-se


      Aqui a nossa personagem quer contratar uma preceptora para a filha. Numa agência, falou com uma bearnesa mal-humorada. Para o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, só há bernesas. Para o Dicionário Houaiss, bearnês é o indivíduo natural ou habitante do Béarn, em França. O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa também ignora o vocábulo.

[Post 4368]

26.1.11

«Chamar à colação»

Mal colado


      O caso do dia: fecho das escolas de ensino particular e cooperativo (mas sustentadas em parte, soube-se agora, com muito dinheiro do erário público). No noticiário da 1 da tarde na Antena 1, passou um excerto do programa Antena Aberta. Perguntou António Jorge ao secretário de Estado da Educação, João Trocado da Mata: «Pondera a possibilidade de abrir inquéritos e de tentar perceber de que forma é que elas [as escolas] podem ser penalizadas, chamadas à colação pelo facto de não estarem a cumprir os objectivos e estarem a cumprir o contrato que têm com o Estado?»
      O que é que o jornalista julgará que significa tal expressão? Bem, há duas expressões semelhantes, só varia o verbo: trazer à colação e vir à colação. A primeira significa citar, referir a propósito; a segunda significa vir a propósito. Usou-a, pois, a despropósito. «Chama-se propriedade», lembrou Vasco Botelho de Amaral nas Meditações Críticas sobre a Língua Portuguesa (Lisboa: Edições Gama, 1945, p. 26), «aquela virtude que nos leva a escolher a melhor palavra capaz de traduzir com exactidão algum conceito.»

[Post 4367]

Léxico: «aquaplano»

A todos os neógamos


      A palavra do dia da Priberam é neógamo! Que ou quem casou recentemente=recém-casado. Gamos, estão a ver?, aqueles mamíferos simpáticos com galhos achatados nas pontas... Presta-se a piadas infames. Não vim aqui para isso, mas para isto: na obra dos rapazes que transportam as clavas, uma jovem esbelta está a praticar esqui aquático. Antes, porém, «ela lançou-se para a água e nadou até ao aquaplano». É impressão minha ou os dicionaristas modernos também se esqueceram deste vocábulo? E ele anda por aí.

[Post 4366]

Léxico: «clava»

A sério?


      Ao anglicismo «caddies», leio aqui esta nota de rodapé numa obra que não posso identificar: «No golfe, os rapazes que transportam as clavas.» Os meus leitores conheciam esta acepção do termo «clava»? O omnipresente Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora regista o que todos registarão: pau curto terminado em pêra; moca; maça. Na Botânica, é o órgão intumescido na extremidade livre. (Ainda ninguém se lembrou de pôr os cádis, jovens ou velhos, a fazer este trabalho.)

[Post 4365]

Léxico: «ciganidade»

Essa é boa!


      «Os ciganos não têm individualmente uma marca genética ou biológica distintiva, concluiu um estudo português publicado numa revista científica internacional, que descobriu que as populações ciganas europeias têm origem no Noroeste do subcontinente indiano. […] “Não há nenhum gene de ciganidade. As comunidades ciganas, como a portuguesa, não são compostas por indivíduos que tenham uma ‘marca’ genética ou biológica distintiva”, explicou à agência Lusa António Amorim, coordenador do estudo do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular (IPATIMUP)» («Ciganos não têm marca genética distintiva», Diário de Notícias, 26.01.2011, p. 27).
      Não percebo: para quê o itálico? (Sim, é verdade, teria sido melhor as aspas.) Se escrevem «portugalidade» sem aspas, qual a lógica? Até essa invencionice da «lusofonia» anda por aí à solta sem o açaimo das aspas. Sempre discriminados...

[Post 4364]

Léxico: «medina»

Desalinhado


      «Leila Trabelsi, antiga cabeleireira, filha de um vendedor de fruta e legumes, tinha crescido num dos mais pobres bairros da medina de Tunes» («Mulher do ex-Presidente liderava “cleptofamília”», Maria João Guimarães, Público, 20.01.2011, p. 9).
      O Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora em linha lá continua a ignorar que a palavra «medina» existe.

[Post 4363]

«Herbário»: outra acepção

Ah!


      «Pela secretária — enorme — e por muitos dos bancos do anfiteatro estavam espalhadas 68 folhas de cartão. Presos em cada uma delas — como se fossem folhas secas, num herbário — estavam outros tantos perfis de peixes verdadeiros, quase todos em bom estado de conservação, animados à custa de verniz e de olho brilhante e vivo em folha de ouro. […] Certo é que as colecções de herbários de peixes — designa-se mesmo assim, o resultado daquela técnica de conservação — são raras, na Europa. E que ainda o são mais as que resultaram da longa e frutuosa expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira. D. João VI terá levado para o Brasil muitas peças que ainda não foram identificadas; outras desapareceram com o incêndio no Museu de Bocage (Museu Nacional de História Natural, Lisboa), em 1978. Em Portugal, restava uma pequena colecção de 18 exemplares, idênticos aos descobertos em Coimbra» («O segundo achamento dos peixes da Amazónia», Graça Barbosa Ribeiro, «P2»/Público, 20.01.2011, p. 9).
      O que me parece é que os dicionaristas ignoram isto. Querem ver que ao Grande Dicionário Sacconi da Língua Portuguesa nem esta escapou?! Tem a palavra o leitor Paulo Araujo.

[Post 4362]

Sobre «consoar»

Isso era dantes


      E por falar em soar: até 1945, salvo erro, só as consoantes consoavam, e todo o tempo. Os homens apenas podiam consuar, e não somente na quadra própria, mas todas as noites (vejam acepções do substantivo respectivo). Naquela altura, ensinava-se que vinha de consum, do latim cum+sub+unum. Actualmente, está tudo amalgamado na mesma grafia, e a etimologia de «consoada» já é outra. Evoluções...

[Post 4361]

25.1.11

«Já são meio-dia e meia»?

No relógio da praça


      A minha filha está aqui a ver um DVD com a história do Pinóquio. O velho Gepeto está a afeiçoar uma tábua para construir qualquer objecto e começa a estranhar a demora de Pinóquio. «Hum... Já são meio-dia e meia...» Ora, mas nós dizemos «deu meio-dia». Isto é, diz-se na província, com o relógio da praça a soar. Os mais avisados, escreveu Augusto Moreno, consideram que estas são orações impessoais.

[Post 4360]

«Carrossel/carrocel»

Pequena guerra


      «O nome carrousel (em francês) significa “pequena guerra” e era usado para descrever uma série de jogos praticados por cavaleiros no tempo das cruzadas. O jogo consistia em fazer um trajecto a galope sem tocar em bolas de argila espalhadas pelo percurso e repletas de água perfumada. Foi em França que o carrossel se transformou num grande acontecimento, cujo ponto alto eram os torneios feitos num recinto onde os cavaleiros, a galope, usavam lanças para alcançar pequenos anéis presos entre dois postes» («Jogo de cavaleiros», «P2»/Público, 20.01.2011, p. 2).
      Não é raro ver-se a grafia «carrocel», mas, atendendo ao étimo, deve escrever-se carrossel, que é a forma registada por Rebelo Gonçalves no seu Vocabulário da Língua Portuguesa.

[Post 4359]

Acordo Ortográfico

Fale por si


      No correio dos leitores da edição de ontem do Metro (p. 9), foi publicada esta carta assinada por Nuno Duarte: «Parece que a reação de alguns setores à conceção e adoção do novo acordo ortográfico (como foi batizado) é de objeção. De fato, há aspetos neste acordo que tornam difícil a sua receção pelo coletivo, em especial quanto à dição de algumas palavras impressas, devido à supressão de carateres. Contudo, a direção certa e a melhor ação a tomar é deixar a afetividade em relação à antiga ortografia e começar a escrever de modo exato. É que, sejamos diretos: este modo de escrever pode não ser ótimo, mas é um ato consumado e até já o ensinam às crianças no atual ano letivo. Uma pequena nota: este texto não tem 20 erros; foi escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.»
       As contas não batem certo. De qualquer modo, o texto não tem vinte erros, não: tem, pelo menos, dois. Segundo as novas regras ortográficas, não passaremos a escrever, nós, Portugueses, «fato» como alternativa a «facto», tal como também não o faremos em relação a «dicção». Quanto ao resto, um erro factual: pode ser um acto consumado, mas ainda não o ensinamos às crianças neste ano lectivo, mas apenas no próximo. Claro que os jornais estão sedentos destes contributos, e nem reparam nestes erros. É que são muitas páginas para encher diariamente.

[Post 4358]

Dupla grafia

Imagem tirada daqui

Ah, não sabiam...


      «A tradição volta a cumprir-se na vila alentejana de Castro Verde, na próxima quinta-feira, com a realização da Feira de São Sebastião. O certame é também conhecido como Feira do Pau Roxo, nome associado à cenoura roxa, bastante procurada nesta altura do ano. […] Esta leguminosa foi em tempos um petisco comum nas tabernas da região, onde era comida crua às rodelas ou cozida e temperada com vinagre» («Feira de São Sebastião ou do Pau Roxo», Diário de Notícias, 16.01.2011, p. 29).
      Poucos leitores saberão que as cenouras só são cor de laranja desde o século XVI. Antes eram brancas, roxas e até talvez pretas. (Duplas grafias: cenoira e cenoura.)

[Post 4357]



Léxico: «dendrocronologia»

Pergunto


      «Os estudos de dendrocronologia (como se chama a ciência do estudo dos anéis de crescimento das árvores) têm permitido compreender melhor o clima do passado, e muitos arqueólogos começaram a relacionar as conclusões destes estudos com períodos históricos concretos, procurando nas fontes documentais provas ainda mais concretas dos efeitos do clima. Com água e nutrientes abundantes, os anéis das árvores tendem a crescer mais, o que não acontece nas fases secas ou frias» («Variações climáticas explicam fim de Roma», Diário de Notícias, 16.01.2011, p. 39).
      A dendrocronologia é a ciência, como se lê no artigo, ou a mera «determinação da idade que se baseia na contagem dos círculos dos troncos das árvores», como lemos, por exemplo, no Dicionário Houaiss?

[Post 4356]

Como se escreve nos jornais

Das osgas


      «As histórias repetem-se e não são exclusivas de Portugal. Não falta quem garanta que ficou careca a partir do dia em que uma osga esteve na sua cabeça; e quem afirme ter ficado cheio de dores no corpo por ter comido por um utensílio de cozinha onde uma osga caiu acidentalmente. Há ainda relatos mais dramáticos que dão conta da morte de indivíduos envenenados por esta espécie. O curioso é que os especialistas encontraram versões iguais em outros países, onde predomina a cultura árabe, como o Paquistão e o Egipto, levando a admitir que as crenças sejam um legado cultural. O próprio nome aponta nesse sentido. É que osga em árabe pronuncia-se wazaghah» («Herança árabe até no nome», Roberto Dores, Diário de Notícias, 16.01.2011, p. 45).
      «Osga em árabe pronuncia-se wazaghah»? Na peça principal, fala-se de uma campanha da Universidade de Évora para salvar as osgas, coordenada pelo biólogo Luís Ceríaco. Foi a uma comunicação deste académico que o jornalista foi copiar mal a informação. Cito o que interessa ao caso: «To strengthen this idea, one of the Arabic expressions for geckos is Bors or Wazaghah (Lane 1863), being the latter a word phonetically similar to the common Portuguese word of gecko “Osga”. Thus, we can assume that the folklore about the gecko, as its own common name, in Portugal, is most likely another cultural inheritance from Arabic origin.» No resumo desta comunicação, lêem-se estas pérolas: «Esta história, tal como a de que a urina de osga em alimentos matou alguém, são contadas desde o Norte de Portugal até ao Paquistão. Sendo a expressão árabe para osga extremamente semelhante à portuguesa (Wazaghah = Osga), e sabendo que em países que não tiveram sobre domínio árabe, este medos não existem, é provável que estas ideias sobre as osgas, sejam um vestígio da cultura islâmica em Portugal.»

[Post 4355]

24.1.11

Acordo Ortográfico

Notícias do meu país


      Lembram-se da minha recomendação de levarmos os nossos filhos para Badajoz? Reitero-a com igual razão. Ontem vi outra — repito: outra — professora de Português (não posso dizer onde, só que é uma espécie de laboratório) a escrever «hábito» sem h, pois meteu na cabeça que é o que a a), n.º 2, da Base II do Acordo Ortográfico de 1990 estipula. Este país poucos conhecem. Não queria estar na pele dos infelizes dos alunos...

[Post 4354]

Regência do verbo «atender»

Vejamos


      «Atendendo o desinteresse dos jornais portugueses pela ebulição de um país do Magrebe, adianto sugestões para que satisfaçam os desejos da plebe e, ao mesmo tempo, encaixem uma notícia sobre a Tunísia. Título: “Filha de Djaló e Luciana Abreu não se chama Bizerta”; texto: “O bebé do ano, a filha do sportinguista e da ex-Floribella não vai chamar-se Bizerta, nome de cidade da Tunísia. Por coincidência, o presidente da Tunísia acaba de fugir do país...”» («Sugestões para fugir à distracção», Ferreira Fernandes, Diário de Notícias, 16.01.2011, p. 72).
      Parafraseando, «levando em conta o desinteresse dos jornais portugueses, etc.». Qual a regência do verbo atender neste sentido? No Ciberdúvidas, Edite Prada afirma isto: «O verbo atender pode ser transitivo oblíquo, sendo seguido da preposição a  atender a com sentido de considerar, levar em conta, prestar apoio, etc., ou pode ser transitivo directo, no sentido de acolher, receber, etc.» Não é o que concluo da leitura de Francisco Fernandes (Dicionário de Verbos e Regimes. São Paulo: Editora Globo, 36.ª ed., 1989, pp. 106-7). Montexto, pode dizer-nos o que registam a Enciclopédia Portuguesa e Brasileira e Mário Barreto nos Fatos da Língua Portuguesa, esses tesouros inexauríveis?

[Post 4353]

Ortografia: «cor de ferrugem»

Perdulários


      «Um vasto manto de lama, cor-de-ferrugem, engolia casas, árvores, caros» («Tupã: o supercomputador para prevenir tragédias», Vanessa Rodrigues, Diário de Notícias, 24.01.2011, p. 41).
      Poupe os hífenes, senhora jornalista, podem vir a fazer-lhe falta noutra ocasião. Já noutros textos foquei esta questão.

[Post 4352]

23.1.11

Sobre «pdf/pdfs»

Vai ter imitadores


      «O formato da Amazon é simples e leve, pelo que quarenta livros ocupam tanto espaço como um livro em pdf. A grande vantagem deste novo Kindle sobre o anterior é ser fácil carregá-lo de pdfs e lê-los com maior nitidez do que outros leitores de e-books. O meu velho BeBook, lamento dizer, morreu de vez. Bem feito» («Aleluia, Kindle», Miguel Esteves Cardoso, Público, 19.01.2011, p. 35).
       Assim, pdfs, toda grafada em minúsculas, disfarça muito bem o s... Mas trata-se de uma sigla, e as siglas são habitualmente escritas em maiúsculas e sem marca de plural.

[Post 4351]

Linguagem

Boicote original


      Mário Rui Cardoso, no noticiário das 11, na Antena 1, depois de ter ouvido um entrevistado: «Joaquim Ventura, presidente da Junta de Freguesia de Granho, Salvaterra de Magos, uma localidade onde decorre um apelo à abstenção, tal como em Gralheira, concelho de Cinfães, onde a mesa de voto abriu, mas com um boi e uma vaca à porta, o boi e a cote, e o protesto é pela falta de rede de telemóvel.» Talvez nem todos os ouvintes tenham percebido a piada.

[Post 4350]

«Ex-números um»?

Noves fora


      «O nível de ténis exibido ontem na sua estreia no Open da Austrália foi bom, mas faltou qualquer coisa à ex-número um mundial para dar uma alegria aos inúmeros fãs que tem naquela região do globo» («Ex-números um expatriadas do Open», Pedro Keul, Público, 19.01.2011, p. 31).
      Um leitor é que me comunicou a estranheza, e fiquei a pensar. «Ex-números um»? Dizemos mesmo «números um»? Ou diremos antes «números uns»? Não pluralizamos os números?

[Post 4349]

Léxico: «bipé»

Metralhadora MG34 montada no bipé.
Imagem tirada daqui

Não só


      «Ainda de acordo com aquela força policial, a referida metralhadora apreendida encontra-se em estado novo e dispunha de um bipé. Em termos históricos, a MG34 foi usada na Segunda Guerra Mundial como arma de defesa contra tanques e aviões» («Metralhadora rara apreendida em bairro», Público, 19.01.2011, p. 22).
      Nunca tinha visto esta palavra fora dos dicionários. No Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora está registada: «MILITAR órgão de apoio para o tiro de certas armas de infantaria, constituído por duas pernas em ângulo, que, por meio de uma braçadeira, se ligam à parte anterior do cano.» Mas não está correcto: é especialmente este apoio de certas armas, mas não só: aplica-se a todo o tipo de apoio semelhante.
      Tripé, bipé... Unipé? Não, por acaso não: se precisarmos de o dizer, só temos o vocábulo unípede. É pena.

[Post 4348]

22.1.11

Sobre «imolar-se»

E outros amolam-se


      Vítor Rodrigues Oliveira, no noticiário das 3 da tarde na Antena 1: «Mais duas pessoas imolaram-se em fogo no Norte de África. Uma pessoa no Centro de Marrocos e outra no Saara Ocidental, onde se reivindica a separação do Estado marroquino.» Como quem diz «afogado em leite». Para os Romanos, imolar-se (immolāre) era sacrificar-se a qualquer divindade. O sentido moderno e o que se infere do texto é o de pôr termo à vida, como expiação ou protesto. Podemos imolar-nos pelo fogo, ou seja, podemos sacrificar-nos por meio do fogo, recorrendo ao fogo.

[Post 4347]

Sobre «reporte»

Dispensamos


      A EPAL julgava estar acima da lei. Hoje, José Manuel Zenha, secretário-geral da empresa, veio explicar: «Dos restantes, ao nível das chefias hierárquicas, nomeadamente, e é isso que de certa maneira a comissão de trabalhadores refere, ao nível das chefias hierárquicas, apenas foram abrangidas duas chefias hierárquicas, e nenhuma delas de 1.º nível de reporte. Foi uma do 2.º nível de reporte e outra do 3.º nível de reporte.»
      Pode ser apenas um derivado regressivo do verbo reportar, e por isso sem qualquer influência do inglês, mas ainda não está dicionarizado nesta acepção. Aliás, o verbo reportar também anda mal definido nos dicionários. Pelo menos no excerto das declarações daquele responsável da EPAL, não faz falta nenhuma.

[Post 4346]

21.1.11

Como se escreve nos jornais

Parabéns

      Luciana Abreu e Yannick Djaló pensaram, pensaram, pensaram, pensaram... e o nome do bebé saiu, escorreito e portuguesíssimo: Lyonce Viiktórya. Apesar de toda a incompetência e ignorância que já vi em conservatórias do registo civil, palpita-me que o nome não vai ser admitido. Ah, mas não era disto que eu queria falar. Disto, sim: «Muitas vezes obrigando a correrias loucas em direcção a todos os pontos cardeais e colaterais, especialmente por a máquina de campanha ser um somatório de boas vontades e de amadorismo, a campanha que hoje termina foi diferente. Ou tentaram fazer que o fosse. Pela postura, pelo rótulo de “candidatura da cidadania”, pelo ênfase dado às propostas, em detrimento dos ataques e contra-ataques entre candidaturas, que tornam o debate político essencialmente pobre», Pedro Olavo Simões, Diário de Notícias, 21.01.2011, p. 10).
      Um dia, os jornalistas ainda saberão que o vocábulo «ênfase» é do género feminino. Entretanto, nem tudo é de rejeitar. Vejam esta frase, por exemplo: «Ou tentaram fazer que o fosse.» Em cada mil jornalistas, 999 escreveriam assim: «Ou tentaram fazer com que o fosse.»

[Post 4345]

Como se escreve nos jornais

Lendário


      «“Enquanto houver um ponto de conecção e entendimento, acho que é possível fazermos coisas juntos”, constata, referindo-se aos dois DJs. “Todas as pessoas que vêm aqui são pessoas com as quais tenho algo em comum e com quem fico contente só por poder juntar estas pessoas”» («‘Homem-Tigre e seus amigos nos Coliseus», Alexandre Elias, Diário de Notícias, 20.01.2011, p. 53).
      O Homem-Tigre é que falou — mas os erros são todos do jornalista. (Claro que a segunda frase não saiu nada escorreita.) Ou serão de algum revisor? Ele há erros e erros, aquele, «conecção», é de cair para o lado.

[Post 4344]

Linguagem

Mas agora morreu


      Morreu o escritor francês Jean Dutourd. A edição de ontem do Diário de Notícias lembrou o homem (grande homem) no seu obituário e, entre o que quero realçar, está isto: «As controversas opiniões a favor dos sérvios da Bósnia, durante o conflito na ex-Jugoslávia, e contra a feminização dos nomes nos anos 90, valeram-lhe muitas críticas» («Um escritor inconformado e homem de causas», Diário de Notícias, 20.01.2011, p. 49). É isso que se pode ler aqui e ali, «farouchement opposé à la féminisation des noms de métiers». Dar-se-ia bem com a nossa «presidenta»…

[Post 4343]

«Entre o senhor e mim»

Delírios


      Fernando Nobre já desafia Cavaco: «A partir de agora, é entre o senhor e eu» («Providencialismo e tragédia de um Nobre exaltado», Pedro Olavo Simões, Diário de Notícias, 20.01.2011, p. 20).
      Milhões de portugueses falam da mesma maneira, mesmo sem estarem exaltados. Duarte Nunes de Leão, que conhecia bem a língua, escreveu na Crónica d’el-rei D. Afonso: «Entre o Senhor Rei de Portugal e mi,...» E Filinto também escreveu: «Entre ela e mim vou pôr de encontro imensos mares.» E já que falo nisto, ocorre uma questão paralela. Como se deve dizer: «Eu, se fosse a ti...» ou «Se eu fosse tu...»? Camilo escreveu desta última forma.

[Post 4342]

Sintaxe: «valer a pena»

Na volta do correio


      «O mundo dos livros, depois da Amazon (e da maravilhosa Book Depository, que não cobra o correio), passou a ser uma imensidão com muito mais livros, mas muito menos livros (que nunca foram muitos) que valem a pena ler» («O mundo dos livros», Miguel Esteves Cardoso, Público, 21.01.2011, p. 41).
      O que é que vale a pena — os livros ou ler? E eu preferia que a maravilhosa Book Depository não cobrasse os portes.

[Post 4342]

«Aquando da», de novo

Esforcem-se um pouco


      Pode ler-se aqui que, «aquando da sua apresentação pessoal à presidência que havia tomado posse», etc. Nem à mão de Deus-Padre devemos escrever assim. Já aqui falámos noutras ocasiões desta malfadada locução prepositiva. Apesar de usada por alguns, poucos, escritores, já aqui o afirmei, e de estar registada no Vocabulário da Língua Portuguesa de Rebelo Gonçalves, é de evitar. Epifânio preveniu que há barbarismo tanto na construção «quando da» como em «aquando da», mas que era requintado nesta última. Para ser correcta, a frase em cima havia de construir-se assim: «Quando foi a sua apresentação pessoal à presidência que havia tomado posse», etc. Augusto Moreno vê influência e má adaptação do francês lors de. Depois de se ter começado a admitir o uso de quando foi da, que se abreviou em quando da, em algum momento infeliz se chegou à construção abstrusa aquando da. Que caiu no goto de muita gente, incluindo revisores.

[Post 4341]

20.1.11

Léxico: «desligamento»

Eu não disse?


      Já aqui referi uma vez a hesitação dos falantes no momento de usarem um substantivo em –mento. Na série de entrevistas e debates relacionados com as presidenciais conduzidos por Maria Flor Pedroso na Antena 1, hoje estavam em estúdio Nilton, Jacinto Lucas Pires e Miguel Tiago. Sobre a indiferença dos jovens em relação a estas eleições, Jacinto Lucas Pires, que é escritor, disse: «Eu acho que há uma... um desl... uma... Ia inventar uma palavra, um “desligamento” [risos], mas que é um pouco permanente, e que tem a ver com as pessoas não se sentirem parte da política.» Não inventaria nada, já existe. Afoitamente: desligamento.

[Post 4340]

«Se» apassivante

Das que são vistas


      «Dois reclusos não o eram tanto como se pensava. Estavam numa carrinha celular à porta do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, ambos com algemas. Estas pareciam — duas argolas, aço — das que se vê nos filmes, um tipo preso às barras da cama, ela aproveitando-se para se ir embora com a carteira dele, ele desesperado e impotente, sem poder desprender-se das tais algemas. As dos dois citados reclusos pareciam destas mas não eram.» («Entretanto, no dia-a-dia», Ferreira Fernandes, Diário de Notícias, 20.01.2011, p. 64).
      Prefiro a construção em que o se é partícula apassivante, levando o verbo para o plural, a concordar com o sujeito: «das que se vêem nos filmes»/«das que são vistas nos filmes».

[Post 4339]

19.1.11

Pronomes pessoais enclíticos

Muito tino


      Mesmo nos clássicos, já aqui se viu, nem tudo é para imitar. Em Filinto, por exemplo, vê-se o particípio passado com pronomes pessoais enclíticos: «Tinha eu feito o retrato do meu amigo e metido-o numa bocetinha.» Veio-me agora à memória esta precaução, já no fim do dia, quando ouvi a minha filha usar uma construção semelhante.

[Post 4338]

Léxico: «tigré»

Idioma etiópico


      Retomando questões antigas. Aqui, lamentava que os dicionários da língua portuguesa não registassem os vocábulos amarinha, gumuzinha, orominha, somalinha, tigrinha, todos eles nomes de dialectos etíopes. Ora, a verdade é que há na língua portuguesa, e desde há muito, o substantivo (e adjectivo) tigré. «Diz-se de ou língua do ramo etíope da família de línguas camito-semíticas, falada na Etiópia», regista o Dicionário Houaiss.
      (O padre José Vieira, missionário comboniano, é actualmente a melhor fonte da imprensa portuguesa sobre a situação no Sul do Sudão, pois está a missionar em Juba.)

[Post 4337]

«É assunto para esclarecer»

Vamos esclarecer


      Uma leitora pergunta-me se se deve dizer «é um assunto a esclarecer» ou «é um assunto para esclarecer». De nenhuma das maneiras — se quisermos ser rigorosos. Lembrei-me que Augusto Moreno tratou da questão nas suas Lições de Linguagem, Vol. 1 (Porto: Editora Educação Nacional, 1937, pp. 140—41). «É afrancesada a sintaxe com a preposição a. Em vernáculo: “É assunto para esclarecer”, ou: “É assunto que deve (ou precisa) ser esclarecido”. Com o verbo precisar, os clássicos também diziam: “É assunto que precisa esclarecido”, sem o verbo ser. — Note a supressão do artigo indefinido um, com que modernamente muito se afrancesam as construções.»
      (Augusto Moreno, sabiam?, foi revisor literário na Figueirinhas. Nessa altura, ainda não havia revisores filológicos...)

[Post 4336]

Léxico

O caso das algemas


      Paulo Flor, porta-voz da PSP, à Antena 1: «Nos últimos anos, aquilo [de] que nós temos conhecimento, das milhares de detenções que são feitas por ano, é que a PSP nunca teve nenhum problema relativamente à algemagem de elementos detidos, a elementos perigosos. De facto, sempre utilizamos algemas neste caso, é uma medida cautelar de polícia, que tem surtido o efeito desejado e que tem permitido manter em detenção e em segurança quer os detidos quer os detentores, no caso concreto, os elementos policiais.»
      Cá está um vocábulo que qualquer polícia conhece e eu desconhecia até hoje. Não está registado nos dicionários, não, mas na sua formação ninguém erra: basta ligar o verbo da 1.ª conjugação ao sufixo (do francês? Do provençal?) –agem, formador de substantivos de base verbal ou nominal.

[Post 4335]

18.1.11

Léxico: «jaleco»

Imagem tirada daqui

Oh, senhora jornalista!...


      Chama-se Programa 100 % e é uma iniciativa dos ministérios da Educação e da Saúde e tem o apoio da Associação de Cozinheiros de Portugal (ACPP). O objectivo é servir refeições mais saudáveis nas escolas. Hoje, na Antena 1, falava-se do programa e a jornalista afirmava que, para cativar os cozinheiros das escolas, lhes eram oferecidos jalecos. E explicava o que eram jalecos: «aventais dos cozinheiros». Nada disso: jaleco é o que se vê na imagem. Também se vêem de meia-manga. Aliás, habitualmente dá-se-lhes o nome de «jalecas». Agora os dicionários. O Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora de jaleca diz que é um «casaco curto, sem abas, que só chega à cintura; jaqueta» e de jaleco que é a «peça de vestuário semelhante a casaco curto que apenas chega à cintura; fardeta». «Jaleco» veio-nos (mais uma) do espanhol; jaleca vem de «jaleco», com alteração da vogal temática, como sucede com tantos outros vocábulos da nossa língua. Ao barrete dos cozinheiros, os Brasileiros chamam bibico («dois bicos ou pontas»).

[Post 4334]

Notas de rodapé

Radiotransmissor


      Em 2010, disse-me, orgulhoso, leu mais de duzentos livros policiais. E eu acredito: pelo menos todas as tardes ali está no jardim, ao sol, agora de Inverno, e só levanta a cabeça quando alguma criança dá um gritinho mais agudo. Este ano já está nos livros de guerra e espionagem. Hoje estava a ler Massacre na Normandia, de Matthew Holden, com tradução de Manuel Eduardo dos Santos (Mem Martins: Europa-América, [1984?]). «Veja», disse-me. «O livrinho tem menos de 130 páginas e só uma nota de rodapé, e a menos necessária: à abreviatura RAF, na página 8. Na mesmíssima página em que aparece um misterioso “R/T”. E que raio é isto, “R/T”?» Não terá escolhido o melhor exemplo, mas o reparo nem por isso é injusto: os nossos editores não gostam de notas de rodapé. Nem de muitas nem de poucas. Os leitores não são da mesma opinião.

[Post 4333]

Léxico: «hostel»

Só podemos adivinhar


      «As sete colinas definem os conceitos. Cada um deles é alusivo a um elemento característico de Lisboa: o eléctrico, o candeeiro verde, a Ponte 25 de Abril, a sardinha, o Santo António, a guitarra portuguesa e o beirado das janelas. A partir daí, nascem os graus de separação deste hostel com vista privilegiada sobre o rio; os pisos estão divididos entre os dos Santos Populares, o das comidas tradicionais, o dos bairros típicos e o dos fadistas» («Sete colinas num ‘hostel’ lisboeta», Davide Pinheiro, Diário de Notícias, 18.01.2011, p. 52).
      Apesar de estar no título, o jornalista nunca explicou o conceito de «hostel», como se fosse familiar aos leitores. Etimologicamente, deriva de hospitalis, tal como «hospital», «hostal», «hotel», «hostería»... Aqui explica-se o conceito.

[Post 4332]

17.1.11

Infinitivo

Também podia ser


      Um leitor, A. C. M., acaba de me mandar uma mensagem de correio electrónico em que me diz que no texto anterior, sobre o uso escusado e errado do vocábulo «gay», o verbo «trabalhar» não podia estar flexionado. «Alguns dos operários despediram-se, por julgarem que ao trabalharem sob o arco-íris das Pinturas Zeitoun iria supor-se que eles eram gay, que por qualquer motivo a empresa somente conseguia contratar pintores gay» (Zeitoun, Dave Eggers. Tradução de Jorge Pereirinha Pires e revisão de Carlos Pinheiro. Lisboa: Quetzal Editores, 2010, p. 24). Não é assim. Se for regido de preposição (a, na frase citada), o infinitivo pode ser flexionado ou não: ao trabalhar ou ao trabalharem. Ambas as construções estão correctas.

[Post 4331]

Interjeições

Eh, vocês!


      «— He, brochista, estou a falar contigo — disse Beck. Deu uma palmada na maçã e pisou-a quando caiu ao chão» (Crimes, Ferdinand von Schirach. Tradução de João Bouza da Costa e revisão de Clara Boléo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, p. 117).
       Não é nada de novo neste blogue: desde quando é que a língua portuguesa tem a interjeição de chamamento «he»? Ih, ih, ih! All this seems quite straightforward, but... É tudo falta de reflexão sobre a língua.

[Post 4330]

«Gay/homossexual»

Lamentável


      «Alguns dos operários despediram-se, por julgarem que ao trabalharem sob o arco-íris das Pinturas Zeitoun iria supor-se que eles eram gay, que por qualquer motivo a empresa somente conseguia contratar pintores gay» (Zeitoun, Dave Eggers. Tradução de Jorge Pereirinha Pires e revisão de Carlos Pinheiro. Lisboa: Quetzal Editores, 2010, p. 24).
      Não sei o que pode levar um tradutor a deixar no original a palavra «gay». O pouco respeito pela língua, talvez. Então já não se diz «homossexual»? Escrevo este texto, porém, por outro motivo: então e a concordância? Já não se sabe distinguir substantivo de adjectivo?

[Post 4329]

16.1.11

Notas de rodapé

Critérios mais que discutíveis


      «Não foram encontrados danos cerebrais, nem foi detectada nenhuma doença do sistema nervoso central ou alguma anomalia ao nível do estatuto dos cromossomas» (Crimes, Ferdinand von Schirach. Tradução de João Bouza da Costa e revisão de Clara Boléo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, p. 141).
      Acharam imprescindível uma nota ao nome do poeta «Archilochos» (não, não me parece necessário consultar os Índices de Nomes Próprios Gregos e Latinos para acertar), mas já quanto a «estatuto dos cromossomas», julgam que todos os leitores conhecem. Estão bem enganados.

[Post 4328]

15.1.11

Revisão

Erros e errata e desculpas


      Eu não disse que é bom dar uma olhadela às cartas ao director dos vários jornais? Na edição de hoje do Público, na página 34, pode ler-se esta carta, assinada pela escritora Helena Osório: «A propósito do texto divulgado na rubrica Livros da página Crianças de sábado passado, assinada por Rita Pimenta, em que se dava conta de “erros de pontuação e de ortografia indesculpáveis” no livro Viagens de José pelo Mundo dos Sonhos, a autora e editora da Animedições informa que os livros estão a ser distribuídos com uma errata cujo conteúdo revelamos:
      Os contos de José são escritos noutro tempo, quando ainda não vigorava o novo Acordo Ortográfico (a partir ano lectivo 2011/2012). Em todos os contos há referências a esse tempo em caixa alta. E apenas uma legenda na página 31 o indica, onde se escreve “estória” pela 1.ª e única vez (e não “história”, i.e. pp. 4, 5, 8, 9, 11, 20, 27, 46). Não se trata de erro ou de má acentuação e, sim, de fazer ver a diferença junto dos mais jovens. Como, por exemplo, “pêlo” da lontra (pp. 9-10, 31, 34, 37) em confronto (ou não) com “pelo” mundo dos sonhos de José; ou como “as fôrmas das inúmeras flores em forma de cálice” (p. 52). Considere-se, nesta obra, a pontuação e hifenização o estilo próprio da autora (i.e. semi-encoberto e semi-desfocadas, pp. 25, 31).
      Na página 13, onde se lê “caiem”, deve ler-se “caem”. Na página 15, onde se lê “de certo”, deve ler-se “decerto”. Na página 18, onde se lê “Não viajás-te” e “Matás-te”, deve ler-se “Não viajaste” e “Mataste”. Na página 25, onde se lê “As folhas de Outono”, deve ler-se “As imaginadas folhas de Outono”. Na página 37, onde se lê “se não”, deve ler-se “senão”. Na página 38, onde se lê “dar-te-à”, deve ler-se “dar-te-á”. Na página 40, onde se lê “tornaste”, deve ler-se “tornas-te”. Na página 49, onde se lê “ouvis-te”, deve ler-se “ouviste”. Na página 52, onde se lê “possui-las”, deve ler-se “possuí-las”. Na contracapa, onde se lê “vindo a preocupar”, deve ler-se “vindo a preocupar-se”.»
      Percebe-se: o dinheirinho foi todo para os artistas plásticos, não chegou para contratar os serviços de um obscuro revisor.

[Post 4327]

Tradução

Com tapa-pés


      «Os técnicos de laboratório foram requisitados e, nos seus fatos de tyvek brancos, procederam às buscas mas nada mais foi encontrado» (Crimes, Ferdinand von Schirach. Tradução de João Bouza da Costa e revisão de Clara Boléo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, p. 139).
      Talvez, com as imagens de filmes recentes ainda presentes, os leitores saibam do que se trata, mas, ainda assim, vejam como é mais claro o que se lia numa reportagem publicada hoje no Diário de Notícias: «Os inspectores detêm 30 jovens para interrogatório. A equipa da LPC [Laboratório de Polícia Científica] fica no terreno para realizar as perícias. Com fatos de protecção descartáveis, tapa-pés e luvas, para impedir contaminações do local e dos vestígios, iniciam a observação no passeio anexo ao muro do Colégio [Pina Manique], recorrendo às técnicas de observação directa (os olhos) e luz rasante, com utilização da lâmpada forense GoldPanther de luz branca. Tiram fotos» («Caso encerrado», Céu Neves, Diário de Notícias, 15.01.2011, p. 6). «Fatos de protecção descartáveis», nem mais. E «tapa-pés» também é um achado de simplicidade.

[Post 4326]

Sobre «candeio»

Mera reflexão


      «Uma companhia de cinco ou seis pequenos botes, com dois ou três pescadores dentro de cada um deles» (Zeitoun, Dave Eggers. Tradução de Jorge Pereirinha Pires e revisão de Carlos Pinheiro. Lisboa: Quetzal Editores, 2010, p. 15).
      Não sei se não seria mais correcto companha, que é qualquer associação de pescadores. Costa da Síria, pesca nocturna da sardinha, com recursos a lanternas. Dois parágrafos à frente, diz-se que «o método [é] chamado da lâmpara, termo tomado aos italianos». Não percebo a razão do aparente aportuguesamento. Em italiano é lampara, a «grossa lampada ad acetilene o elettrica fornita di una luce molto forte, che viene utilizzata nella pesca notturna di alcune specie di pesci» (in Dicionário Hoepli). Parecido, só o espanhol lámpara. Em português, temos o termo candeio para designar a pesca nocturna com recurso a archotes. Quase todos os dicionários o registam. Há décadas, porém, que ouço o termo candeio também para a caça nocturna com recurso a lanternas. E já o li usado por Aquilino Ribeiro neste sentido.

[Post 4325]

«Meio», advérbio

Sem meias-tintas


      «Uma anciã de noventa anos já meia cega, que não tivesse lá estado, tê-lo-ia “reconhecido inequivocamente”» (Crimes, Ferdinand von Schirach. Tradução de João Bouza da Costa e revisão de Clara Boléo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, p. 65).
      Como a anciã teria, como é normal num ser humano, dois olhos, poderia ser «meia cega», sim, ou seja, cega de um olho. Contudo, correcto é meio cego(a), isto é, «mais ou menos cego(a)», «com problemas de visão». Via mal dos dois olhos. Meio é ali advérbio, é invariável. É ignorância, porque a norma moderna é diversa, mas já alguém virá afirmar que nos clássicos era assim e que não se deve dizer de outro modo. Lá se avenha... Podíamos referir o exemplo clássico, de Camões, «uns caem meios mortos». Vamos antes para um exemplo de D. Francisco Manuel de Melo, na Carta de Guia de Casados: «O homem que casa com mulher de pouca idade, leva a demanda meia vencida.» Meia está a modificar um adjectivo/particípio, logo, é um advérbio, é invariável. Queremos, à fina força, que «meia» fique na frase? Pois bem, ei-la: «O homem que casa com mulher de pouca idade, leva meia demanda vencida.»

[Post 4324]

14.1.11

Sobre «carácter»

Pelo menos isso


      «A mais antiga escola de ceramistas assinava as suas peças com o carácter raku» (Crimes, Ferdinand von Schirach. Tradução de João Bouza da Costa e revisão de Clara Boléo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, p. 38).
      Entre muitos erros, alguns acertos, naturalmente. Apesar de alguns pretenderem o contrário, a verdade é que quase todos os dicionários registam entre as acepções de carácter a de tipo de imprensa. Não me parece que se precise de outro vocábulo.

[Post 4323]

Sobre «estocástica»

Discordes, por uma vez


      «Aos dez anos aprendeu sozinho estocástica, cálculo integral e geometria analítica de um manual que tinha roubado da biblioteca dos professores» (Crimes, Ferdinand von Schirach. Tradução de João Bouza da Costa e revisão de Clara Boléo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, p. 61).
      Quando li, de imediato me ocorreu que «cálculo de probabilidades» seria o mais correcto. Mas não tenho a certeza. Estranhamente, o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora não regista o substantivo estocástica. O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, por sua vez, afiança que «estocástica» é o mesmo que «cálculo das probabilidades». Para o Dicionário Houaiss, a «estocástica» é o «emprego para uso estatístico do cálculo de probabilidade». É esta, ao que me parece, a definição correcta.

[Post 4322]

13.1.11

«À diferença de»?

Também reclamamos


      «Numa 6.ª-feira dia 13, a Ensitel passou três vezes debaixo de escadas, partiu dois espelhos e cruzou-se com um gato preto, pelo que não pode queixar-se de azar por ter tropeçado numa cliente habituada a fazer valer os seus direitos (à diferença da maioria dos portugueses que se queixam muito mas reclamam pouco), e que, ainda por cima, coordena a comunidade de blogues do Sapo e é mais célebre e influente nas redes sociais do que a batata frita» («O misterioso caso do ‘Nokia E71’ às escuras», Jorge Fiel, Diário de Notícias, 13.01.2011, p. 9).
      ¿Qué tenemos aquí? Posso estar enganado, mas em Portugal nunca ouvi a expressão. Em Espanha, sim: a diferencia de. Locução prepositiva para «denotar la discrepancia que hay entre dos cosas semejantes, o comparadas entre sí». Lá por usarmos «à semelhança de» não quer dizer que possamos usar «à diferença de».

[Post 4321]

Calibre das armas

Não disparem mais


      «A arma é uma pistola de alarme transformada numa 6.35 milímetros, que tinha sido adquirida, já adaptada, a um colega por 200 euros. O propósito da aquisição, segundo o próprio, “não estaria relacionado com uma intenção de a poder utilizar, apenas porque gosta de armas”. Ao jovem foram ainda apreendidos dois cadernos, que trazia numa mochila, com desenhos e referências a composições de mistura de substâncias químicas, assim como a informação onde poderiam ser adquiridas, para a fabricação de explosivos» («Bom aluno a Química com arma e manual de bombas», Célia Domingues, Diário de Notícias, 13.01.2011, p. 18).
      Erro muito comum, este de usar o ponto em vez da vírgula a separar a parte inteira da parte decimal de um número. Não, é 6,35 mm que se deve escrever.

[Post 4320]

«Estadio»?

Isso não


      Hoje foi a vez de o candidato Defensor Moura ser entrevistado na Antena 1 por Maria Flor Pedroso. Nada de especialmente grave, excepto o que a deformação profissional impõe: pronunciou «estadio» em vez de «estádio». De resto, é o candidato com o discurso mais articulado, sem ter, todavia, o estro altissonante de outros.

[Post 4319]

Acordo ortográfico

Além-fronteiras


      Sentem-se, a notícia é tristíssima. Ainda ontem vi uma professora de Português (!) escrever, «segundo o Acordo Ortográfico de 1990», «adatando-nos», «por analogia» com «adoptar» na nova grafia... Claro que também escreveu «interajudar-mo-nos», o que diminui consideravelmente a imputabilidade. E as novas regras ortográficas, recordo, terão de ser aplicadas nas escolas a partir de Setembro. Ainda estamos a tempo de levar os nossos filhos para Badajoz.

[Post 4318]

Redacção

Complicando


      «A dobradiça de uma das portas do armário tinha sido quebrada durante a busca e ela pendia agora torta nos gonzos» (Crimes, Ferdinand von Schirach. Tradução de João Bouza da Costa e revisão de Clara Boléo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, p. 83).
      Claro que sempre podemos complicar a frase com mais sinónimos: «A dobradiça de uma das portas do armário tinha sido quebrada durante a busca e ela pendia agora torta nos gonzos. As portas, que tinham quatro bisagras, ficariam agora definitivamente desiguais, pois já não se fabricavam borboletas daquelas. A fábrica de charneiras, onde tinha trabalhado um tio, fechara há muito. “Que porra!”, pensou Samir. “Agora vou ter de fazer eu um engonço novo na oficina do meu primo. Se a miúda vê que a chumaceira está partida, estou tramado.” Lembrou-se então que tinha alguns gínglimos na arrecadação, e foi para lá que se dirigiu. Procurou na caixa e não encontrou nenhuma macha-fêmea que se assemelhasse, ainda que vagamente. “No baú!” Encontrou um mancal que não destoava muito. Grato, deu um beijo sonoro no quício.»

[Post 4317]

Confusões

Confusões antigas


      Mandado e mandato: «Os mandatos de prisão foram levantados e ambos foram postos em liberdade» (Crimes, Ferdinand von Schirach. Tradução de João Bouza da Costa e revisão de Clara Boléo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, p. 83). Toga e beca: «Os juízes vestiram as suas togas na sala de deliberações, um dos jurados atrasou-se alguns minutos e o guarda teve de ser substituído, depois de se queixar de dores de dentes» (idem, ibidem, p. 59).

[Post 4316]

Tradução

Por Zeus!


      «Karim pensou na frase do filho de escrava Archilochos, que se tornara para ele um leitmotiv: “Muito entende a raposa; o ouriço, pelo contrário, apenas sabe uma coisa» (Crimes, Ferdinand von Schirach. Tradução de João Bouza da Costa e revisão de Clara Boléo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, p. 65).
      Não há, creio, duas interpretações: isto é falta de cultura geral. Por pouco, ficava em grego: Ἀρχίλοχος. Francamente. Então não se trata do poeta grego Arquíloco, que renovou a poesia ao introduzir o verso jâmbico (ou iâmbico, se quiserem)? E o nome até mereceu uma nota de rodapé, mas, ainda assim, não se fez luz.

[Post 4315]

Revisão

Vamos longe


      «A suite tinha 35 m2 e estava decorada em tons quentes de castanho» (Crimes, Ferdinand von Schirach. Tradução de João Bouza da Costa e revisão de Clara Boléo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, p. 85). «A história desse cativeiro que decorreu por 3096 dias foi revelada pela própria em Setembro do ano passado, numas memórias que acabam de ser traduzidas para português, um livro em que conta quase tudo o que viveu para sobreviver à prisão num cubículo de 5 de uma cave e à subnutrição em que era mantida para evitar a sua fuga» («A intimidade dos 3096 dias negros de Natascha Kampusch», João Céu e Silva, Diário de Notícias, 12.01.2011, p. 46).
      É deprimente ver (e os 13,95 euros que o livro custou ajudam a catalisar o processo) como até nos jornais, por vezes, se tem mais cuidado com a escrita. Serão estas questões a que actualmente só os leitores da área de ciências são sensíveis?

[Post 4314]

12.1.11

«Evocar/invocar»

Culpem a polícia


      «Por fim, combinámos que eu informava a polícia sobre a recuperação da taça e dos relógios. Naturalmente, Tanata não me perguntou quem tinham sido os autores, assim como eu me abstive de lhe perguntar sobre Pocol e Wagner. Só a polícia colocou questões; eu pude evocar a minha obrigação profissional de guardar segredo para proteger os meus clientes» (Crimes, Ferdinand von Schirach. Tradução de João Bouza da Costa e revisão de Clara Boléo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, p. 39).
      A polícia às vezes faz grandes estupidezes, e essa de «colocar as questões» é mais uma. Se isto já chegou aos livros revistos, é porque estamos mesmo perdidos. E o narrador, que é advogado, a «evocar a obrigação profissional de guardar segredo», também não é coisa inesperada — só errada. E palavrosa. Invocar, queriam o tradutor e a revisora escrever. E aqui o segredo pode transmutar-se em sigilo.

[Post 4313]

«Fita separadora»?

Imagem tirada daqui

Quem me dera saber


      «O cabeleireiro de Pocol e o passeio foram isolados com fita separadora vermelha e branca, projectores iluminavam o interior» (Crimes, Ferdinand von Schirach. Tradução de João Bouza da Costa e revisão de Clara Boléo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, p. 36).
      E porque há-de ser «separadora»? Não sei.

[Post 4312]

Doutor e licenciado

Nem na Floresta Negra


      «Claro que Fähner passou os seus exames com distinção, doutorou-se e conseguiu o primeiro emprego no hospital da comarca de Rottweil» (Crimes, Ferdinand von Schirach. Tradução de João Bouza da Costa e revisão de Clara Boléo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, p. 14).
      Hoje lembrei-me deste excerto desta obra quando ouvi a entrevista de Fernando Nobre na Antena 1. Dizia o candidato presidencial a determinada altura que o pai queria que ele fosse professor de Cirurgia. Nem mais. Ora bem, o nosso Fähner na página 13 ainda era «estudante de medicina em Munique» (a história da vida da personagem, na verdade bem contada, está condensada em meia dúzia de páginas). Não sei o que está no original, reparem, mas algo me diz que o futuro assassino da mulher não se doutorou — licenciou-se. Algum leitor que conheça o original, Verbrechen, por favor, diga-me alguma coisa.
      Depois de tanta confusão, os dicionários tiveram de passar a registar o vocábulo doutor também como tratamento que, nas relações sociais, se dá a um bacharel ou licenciado. Os verdadeiros doutores, isto é, as pessoas habilitadas com o doutoramento, é que não devem apreciar muito. Entre tese e dissertação também há, como já aqui vimos duas vezes, confusões.

[Post 4311]

Região gandaresa

Morreu e agora sabemos


      «Num café daquela cidade gandaresa, José Malta, farmacêutico, de 30 anos, confessa que tem de fazer “um exercício mental” para perceber o drama. Ao reagir à acusação de homicídio, desabafa: “Só se ele estava possuído, uma coisa do outro mundo, paranormal.” O cunhado enfatiza que havia uma “relação de confiança” entre o cronista e o jovem, mas, apenas, do foro profissional» («Suspeito de homicídio de Carlos Castro tinha namorada», Paula Carmo, Diário de Notícias, 11.01.2011, p. 55).
      Nunca tinha lido o vocábulo na imprensa. Pelos dicionários, não vamos longe no conhecimento do que seja gandaresa. Aqui, leio isto: «A região gandaresa estende-se no sentido norte-sul desde as Gafanhas da ria de Aveiro até aos campos do Baixo Mondego; a nascente confina com as terras da Bairrada e a poente com as dunas do litoral.»
      Gandarês é o que é próprio ou relativo à gândara, que é o terreno despovoado mas coberto de plantas agrestes ou o terreno arenoso pouco produtivo ou estéril. É isso mesmo, caro leitor, a gandarinha, a planta espontânea da família das Iridáceas, deve o seu nome ao facto de nascer nas gândaras. Isso mesmo, o topónimo Gandarinha é daqui que vem, do nome da planta, e a planta, como acabámos de ver, do nome do terreno em que cresce. Agora já pode contar aí (ou lá) em casa.

[Post 4310]

11.1.11

Léxico: «demissor»

Arruadas e analogias


      «Na arruada do fim da tarde, feita debaixo de chuva, em Setúbal, Francisco Lopes foi claro: “O Presidente não é um ‘dissolvedor’ ou um ‘demitidor’ de governos. Cada coisa a seu tempo!”» («“Presidente não é um ‘demitidor’ de governos”», Eva Cabral, Diário de Notícias, 11.01.2010, p. 10).
      Camarada Francisco Lopes, ao indivíduo que demite, seja lá quem for, dá-se o nome de demissor.

[Post 4309]

Léxico: «vermelho-fogo»

Cores e sexo oral


      «Só que Dati é uma mulher bonita e elegante, que dificilmente será apanhada sem os seus saltos altos — bastante altos — e um batom vermelho-fogo» («A bela Dati quer conquistar Paris», Clara Barata, Público, 10.01.2011, p. 15).
      Vermelho-fogo. Se se diz cor de fogo, está correcto. E sim, Rachida Dati é uma mulher muito bonita. Lembram-se de quando, numa entrevista ao Canal Plus, em vez de inflation (inflação), disse fellation (felação)?

[Post 4308]

10.1.11

Jargão médico

Fez e fez bem


      Jorge Araújo, director do Serviço de Cardiologia do Hospital Central do Funchal, no noticiário da Antena 1: «Continua com uma evolução clínica favorável, não voltou a ter queixas nas últimas 24 horas, descansou normalmente e fez um levante esta manhã e recebeu visitas permitidas, inclusivamente dos seus familiares.» Neste caso, não é nada de esotérico — apenas não é usado pelo falante comum. Levante é o acto de levantar-se; alevante. Por extensão de sentido, também é a insurreição contra alguém ou algo; revolta, motim. Neste caso, porém, já estaríamos a falar dos súbditos de Sua Majestade. Quarta-feira teremos um novo boletim clínico. Fico à espera.

[Post 4307]

Como se escreve nos jornais

Títulos e manias


      O obituário de hoje do Diário de Notícias tinha este título: «O mais moderado e diplomata dos três operacionais do 25A» (p. 43). Aposto, singelo contra dobrado, como alguns leitores ficaram de boca aberta e não souberam o que era aquele «25A». É contagioso e apareceu com o ataque às Torres Gémeas: a imprensa anglo-saxónica escreveu «9/11» e por cá achou-se isso a sofisticação máxima. Em 2004, com os ataques bombistas na estação de Atocha em Madrid, a imprensa da Península Ibérica escreveu «11-M». Há títulos mais estranhos, sem dúvida, como este da edição de hoje do Público: «Maurício rimou com eficácia em Vila do Conde» (p. 28). Só perguntaria que merda é esta se fosse malcriado.

[Post 4306]